No coração de Feira de Santana, a riqueza da ancestralidade africana pulsa com força através de iniciativas culturais que reverenciam as raízes negras. Em celebração ao Dia Mundial da Cultura Africana e Afrodescendente, celebrado neste 24 de janeiro, o Acorda Cidade conversou com Valmilton Conceição Pereira dos Santos, conhecido como Val Conceição.
Produtor cultural, cantor e percussionista, Val lidera desde 2014 a Associação Cultural MoviAfro, um quilombo cultural que exalta a história, a arte e a identidade afro-brasileira. Aos 51 anos, ele carrega nas veias o ritmo e a força de um povo que resiste, cria e transforma.
Val é feirense, fruto do bairro Rua Nova, onde cresceu entre as batucadas e os cordões carnavalescos que mais tarde deram origem às escolas de samba na cidade. Filho de Edivaldo Lago dos Santos, conhecido como “Val do Porrete”, já falecido, e dona Hildete Pereira dos Santos, ele cresceu com a sabedoria de ativistas culturais.
“Eu costumo dizer que, desde quando eu fui gerado, desde quando eu estava ainda na barriga de minha mãe, eu já respirava cultura, porque sou filho de ativistas culturais. Meu pai, um dos precursores das escolas de samba daqui de Feira de Santana, minha mãe também. E aí, desde pequeno, já convivo com a cultura de matriz africana, com a cultura afrodescendente.”
Essa herança é a base do trabalho que ele desenvolve desde 2014 no MoviAfro, uma associação cultural que promove a arte, a educação e a consciência racial. Como a própria organização pontua, trata-se de um “grupo de ativismo negro brasileiro que tem construído um expressivo legado cultural, político e social.”
Candomblecista orgulhoso, cresceu com a fé ancestral negra à sua volta e hoje segue o legado, lutando também contra a intolerância religiosa, mais uma faceta perversa do racismo no Brasil.
“Eu sou candomblecista, sou da religião de matriz africana, então já está no sangue. A gente já nasce com essa raiz. E meus pais também, toda a minha família é envolvida com a cultura, são de terreiro de candomblé. Trazemos essa bagagem desde quando a gente nasceu, porque a nossa família já nasceu dentro da cultura, dentro da religiosidade afrodescendente.”
MoviAfro: um quilombo urbano de resistência
Val contou que ele e sua esposa, Viviane Carvalho de Jesus Dias, criaram o MoviAfro em 2014 com o objetivo de oferecer um olhar diferenciado sobre a cultura afrodescendente.
“Criamos o MoviAfro para não apenas tratar das dores e perdas, mas também dar visibilidade às conquistas.” O grupo, que começou com apenas duas pessoas, hoje reúne cerca de 1.300 participantes organizados em 10 núcleos culturais e educacionais.
Recentemente, foi reconhecida como de Utilidade Pública pela Câmara de Vereadores de Feira de Santana. A declaração foi concedida por meio da aprovação do Projeto de Lei de autoria do ex-vereador Jhonatas Monteiro (PSOL).
“Nosso principal objetivo é empoderar através do conhecimento, da conscientização e da educação, porque entendemos que o verdadeiro empoderamento é algo que nunca vão tirar de você”, declarou Val.
Apesar do impacto social e racial na vida de quem é atravessado pela associação, o projeto enfrenta dificuldades financeiras. Este ano, já foi anunciado o calendário de ações afirmativas, com apenas quatro atividades previstas ao longo de 2025. No ano passado, foram 12. O número de atividades precisou ser reduzido em mais da metade devido à falta de apoio financeiro.
“Exatamente por falta de apoio financeiro, por falta de políticas públicas. Surgiram aí alguns editais, algumas coisas, mas que ainda não conseguem abraçar todas as necessidades daqueles que realmente vivem da cultura”, lamentou.
Entre as ações que mais se destacam está o Concurso Miss Afro Feira de Santana, que vai muito além de um desfile da beleza negra, promovendo também conscientização e empoderamento intelectual das participantes. A edição deste ano abriu as inscrições no último dia 20.
Além disso, tem o Cortejo MoviAfro, realizado na Micareta de Feira, que este ano traz mais uma vez uma roda de samba e vai celebrar a Yalorixá, Mãe Graça de Nanã. “Essa festa é uma oportunidade de mostrar que Feira de Santana, embora sertaneja, é uma cidade construída com sangue e suor negro”, afirmou Val.
Sem contar as ações de formação em escolas da região, que vão além dos eventos festivos e investem em atividades educativas. “A gente tem sido convidado para participar de atividades nas escolas do município e do Estado. E a gente está fazendo tudo aquilo dentro da nossa condição”, afirma Val.
A Importância da Cultura Afrodescendente
Apesar de o dia 24 de janeiro, estabelecido pela Unesco em 2019, celebrar o Dia Mundial da Cultura Africana e Afrodescendente, Val destacou que é fundamental que a consciência e o fomento dessas atividades sejam permanentes, ultrapassando o calendário comemorativo.
Durante o tráfico negreiro transatlântico, milhões de negros foram forçados a cruzar o Atlântico, trazendo consigo não apenas sua força física, mas também cultura, educação e inteligência que moldaram o grande Brasil que se tem hoje.
A valorização dessa cultura é um compromisso contínuo, essencial para honrar as raízes que estruturaram o país. O MoviAfro é um exemplo vivo desse compromisso, promovendo iniciativas que resgatam e celebram a riqueza cultural africana e afrodescendente, reafirmando que a luta por reparação histórica e bem viver é diária, coletiva e urgente para a população negra.
Val Conceição ressalta que a preservação e celebração da cultura africana são essenciais para manter viva a memória e a identidade do povo negro. “É a resistência, é manter a história viva. Fazemos o movimento Sankofa: andar para frente sem esquecer do passado, sem esquecer de quem chegou antes de você”, explicou. “Manter a cultura africana viva é se manter vivo. É construir, reconstruir e desconstruir.”
Falta de Apoio
Apesar da importância da cultura de matriz africana, Val denuncia a falta de apoio e reconhecimento por parte do poder público. “A cultura em Feira de Santana é trágica porque não tem sido valorizada, não tem sido ouvida. Para realizar eventos, a gente vende rifas, faz bingos, tira do próprio bolso. A gente tem vendido o almoço para comprar a janta”, desabafou.
Ele espera que as recentes mudanças na gestão municipal tragam maior sensibilidade para a cultura afrodescendente na cidade. “Não só para o MoviAfro, mas também para as outras instituições que, tal como o MoviAfro, desenvolvem esse trabalho gratuitamente para a comunidade, salvando e mudando vidas”, concluiu.
Ainda em entrevista, Val comentou sobre editais de cultura que têm sido abertos, mas projetos educacionais e raciais como os da MoviAfro não têm sido aprovados.
“Foram abertos vários editais com a ideia de democratizar a cultura, de democratizar o repasse de verbas, mas isso tudo não tem passado de falácia, porque não é o que tem acontecido.”
Segundo Val, nos resultados dos últimos editais do governo do Estado, muitos projetos, principalmente de Feira de Santana, estão sendo desclassificados ou ficando em uma suplência que nunca é chamada.
Ao relembrar a história da Associação das Entidades Culturais de Ritmos Afro de Feira de Santana (Aecrafes), Val reconheceu o legado dos que vieram antes dele, como seus pais e tantos outros griôs, verdadeiros guardiões da cultura afro-brasileira.
“Durante mais de 20 anos, acho que quase 30 anos, a gente trabalhou, a gente fez acontecer a Aecrafes, juntamente com Jorge Soweto, com Luiz Carlos, que a gente chama de Luiz Negão, já falecido, Babalu de Lula, meu pai Edivaldo, Val Porrete, como era conhecido, Miliano, enfim, as pessoas que vieram antes da gente. E a gente cresce nesse ambiente e dá continuidade a esse trabalho. Estamos dando continuidade a esse legado que foi deixado pelos nossos ancestrais.”
Neste 24 de janeiro, o MoviAfro convida a sociedade a refletir sobre a importância de valorizar e celebrar a cultura africana e afrodescendente, mantendo viva a história de quem lutou para que a população negra ocupasse seu espaço na sociedade. Afinal, como ensina a filosofia Sankofa, é olhando para o passado que se constrói um futuro de respeito, dignidade e igualdade.
Como Val Conceição afirma, “manter a cultura africana viva é se manter vivo, é construir, é reconstruir e desconstruir.” É nesse movimento constante que Feira de Santana segue cantando sua ancestralidade, resgatando memórias e criando novos caminhos de resistência e esperança.
Para acompanhar as atividades da MoviAfro, siga o Instagram @moviafrofsa.oficial
Com informações do repórter Ed Santos do Acorda Cidade
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